domingo, 27 de julho de 2008

A psicanálise e o autismo


A preocupação da maioria dos psicanalistas tem sido mais a de descrever o funcionamento mental, os estados afetivos e o modo como essas crianças se relacionam com as pessoas do que com questões etiológicas.Especulações a respeito da gênese do autismo surgiram com a tese inicial de Kanner (1943) de que crianças autistas sofriam de uma inabilidade inata de se relacionarem emocionalmente com outras pessoas:"Nós devemos, então, assumir que estas crianças tenham vindo ao mundo com uma inabilidade inata de formar o usual, biologicamente determinado, contato afetivo com outras pessoas, da mesma forma que outras crianças vêm ao mundo com deficiências físicas ou intelectuais inatas." (p. 250) Apesar de seu artigo ter incluído observações a respeito da falta de afetividade nas famílias das onze crianças que ele acompanhou em sua clínica, sua posição foi a de que dificilmente se poderia atribuir todo o quadro apresentado pela criança ao tipo de relacionamento com os seus pais, dado o intenso isolamento social da criança, desde o começo de sua vida.Entretanto, essas mesmas observações levaram à hipótese de que haveria uma ligação entre autismo e depressão materna (Kanner & Eisenberg, 1956). O mecanismo que embasa essa noção é o de que a depressão interfere na capacidade materna para cuidar e envolver-se emocionalmente com o seu bebê. Dessa forma, nas duas décadas que se seguiram à publicação seminal de Kanner, o autismo foi atribuído a causas psicogênicas, formuladas a partir de observações clínicas e da abordagem psicanalítica.Melanie Klein foi a pioneira no reconhecimento e tratamento da psicose em crianças. Apesar dessa autora não distinguir os quadros autistas da esquizofrenia infantil, reconheceu a presença, nas crianças com autismo, de características qualitativamente diferentes de outras crianças consideradas psicóticas (Klein, 1965). Para a autora, o autismo era explicado em termos de inibição do desenvolvimento, cuja angústia decorria do intenso conflito entre instinto de vida e de morte. Supunha, tal como Kanner (1943), que tal inibição seria de origem constitucional a qual, em combinação com as defesas primitivas e excessivas do ego, resultaria no quadro autista. O bloqueio da relação com a realidade e do desenvolvimento da fantasia, que culminaria com um deficit na capacidade de simbolizar, seria então, central à síndrome.Margaret Mahler, por sua vez, identificou diferentes fases no processo do desenvolvimento psicológico do bebê (Mahler, 1968, 1975), sendo a primeira, a do narcisismo primário na qual uma fase ‘autística normal’ marcaria as duas primeiras semanas de vida do bebê. Essa fase se caracterizaria por um estado de desorientação alucinatória primitiva (narcisismo primário absoluto), ocorrendo uma falta de consciência do agente materno. Na fase seguinte do narcisimo primário (onipotência alucinatória condicional) haveria uma consciência de que a satisfação das necessidades viria de algum lugar externo ao eu. A partir do segundo mês de vida, essa consciência, inicialmente ‘turva’ torna-se difusa, marcando o início da fase de simbiose normal – o bebê funciona como se ele e sua mãe fossem uma unidade dual. É dentro desse quadro de total dependência psicológica e sociobiológica da mãe que o ego rudimentar do bebê pequeno começa um processo de diferenciação. Por volta dos seis meses de idade, teria início a fase de separação-individuação que levará à organização do indivíduo.Mahler (1968) desenvolveu suas idéias sobre os autismos infantis a partir de sua teoria evolutiva, explicando o autismo como sendo um subgrupo das psicoses infantis e uma regressão ou fixação a uma fase inicial do desenvolvimento de não-diferenciação perceptiva, na qual os sintomas que mais se destacam são as dificuldades em integrar sensações vindas do mundo externo e interno, e em perceber a mãe na qualidade de representante do mundo exterior. Posição semelhante foi desenvolvida por Tustin (1981), que também reconhecia uma fase autista normal no desenvolvimento infantil, sendo a diferença entre esta e o autismo patológico, uma questão de grau. Para ela, o autismo seria uma reação traumática à experiência de separação materna, que envolveria o predomínio de sensações desorganizadas, levando a um colapso depressivo.Depreende-se dos conceitos acima, a noção de que a ‘retirada’ do bebê para um mundo próprio seria uma conseqüência da falha na modulação das pulsões instintivas, na organização das suas reações formativas e defesas, o que impediria o desenvolvimento de uma verdadeira relação objetal. O autismo foi ainda compreendido como sendo, por exemplo: a) uma reação autônoma da criança à ‘rejeição materna’ cuja raiva leva a interpretação do mundo à imagem da sua cólera e à reação de desesperança (Bettelheim, 1967); b) uma cisão do ego precoce, ocasionando uma desorganização dos processos adaptativos e integrativos como falha na superação da posição paranóide (Klein, 1965); c) um sintoma dos pais em que a mãe é vista como um vazio de manifestações espontâneas de sentimentos (Kaufman, Frank, Friend, Heims & Weiss, 1962); d) uma forma de ausência completa de fronteira psíquica decorrente de uma falta de diferenciação entre o animado e o inanimado (Mazet & Lebovici, 1991); e, e) conseqüência de severas dificuldades em formar representações ícones entre as primeiras representações mentais e áreas somáticas (Aulagnier, 1981, citada por Maratos, 1996).Concebe-se a criança autista como vivendo em um estado mental caracterizado por insuficiente diferenciação entre estímulos vindos de dentro ou de fora do corpo e incapacidade para construir representações emocionais. Dessa forma, todo estímulo (social e não-social) seria experienciado como sendo fragmentado, impedindo a possibilidade de formação de uma experiência contínua, seja quando só ou na presença de outros. O conceito de ‘desmantelamento do ego’ de Meltzer (Meltzer, Bremer, Hoxter, Weddell & Wittenberg, 1975) ilustra este processo no qual a atenção da criança à função total de um objeto é suspensa, sendo concentrada em partes do objeto que são mais atrativas para ela em um dado momento. Esse desmantelo, no qual o processo de senso de integridade e continuidade é interrompido, leva ao predomínio de emoções primitivas e muitas vezes dolorosas. O autismo seria então uma defesa contra o desmantelamento do ego. Estes autores chamam a atenção para a necessidade de se mobilizar a atenção nestas crianças de modo a possibilitar uma relação coerente com os objetos e com o seu próprio self.A questão do problema de bombardeamento de sensações no autismo foi abordada por Tustin (1981, 1990), que propôs a noção de ‘colapso depressivo crônico’ ao compreender os estados autistas como uma reação a uma incapacidade de filtrar as experiências sensoriais, na qual a função do ‘tampão’ ou ‘concha’ autística seria mais a de proteção do que compensatória (i.e. de reação contra a ansiedade), diferindo, dessa forma, de Mahler e Meltzer.A controvérsia sobre a existência de uma distorção no desenvolvimento do bebê devido a fatores intrínsecos orgânicos (constitucionais ou adquiridos), ou ainda, ambientais, tem sido tratada de forma linear e reducionista. Entretanto, a noção de que o autismo tem causação múltipla não é nova (Meltzer, 1975), sendo essa tendência uma tônica nos anos 90.Alvarez (1992) chama a atenção para a necessidade de um modelo de feedback interacional que contemple tanto a natureza quanto os cuidados dispensados ao bebê e faz a ressalva de que, a despeito de alguma disfunção neurológica inicial, sempre haverá uma forma particular de deficit psicológico resultante da interação com o ambiente.Complementando essa idéia, Maratos (1996) afirma que ainda que causas orgânicas sejam identificadas, um dos aspectos básicos da abordagem terapêutica não será fundamentalmente alterada, qual seja, a análise dos processos mentais. Por outro lado, Alvarez (1992) e Tustin (1994) reconhecem que a etiologia psicogênica possa ser aplicável a apenas uma parcela das crianças com autismo e reafirmam a necessidade de se levar em conta a associação de fatores neuroquímicos com o funcionamento emocional.Um último tópico que merece ser abordado é a noção de patogenia parental. Alvarez (1992) e Maratos (1996) mostraram-se bastante críticas em relação à noção do autismo como sendo um transtorno decorrente de problemas na qualidade da maternagem. Ressaltaram que Bettelheim (1967), o principal proponente dessa tese, não recebeu apoio de grande parte dos psicanalistas ao conceber o autismo como uma defesa contra uma mãe deprimida e fria. Para esse autor, os pais de crianças autistas não forneciam as condições emocionais necessárias para que a criança saísse do seu isolamento, embora salientasse que esse não seria o único fator implicado no autismo. Tais idéias constituíam a base das recomendações de comunidades terapêuticas nas quais as crianças eram afastadas do convívio familiar.Um dos grandes problemas de tais especulações é a confusão entre a reação dos pais ao perfil único de comportamento do filho (a ) e a causalidade parental da síndrome (Rutter, 1994; Trevarthen, 1996). De fato, essa observação não é inédita, pois já na década de 60, Escalona (1968, citado por Ajuriaguerra, 1983) chamava a atenção para esta controvérsia – se autismo seria decorrente de um relacionamento materno inadequado ou de deficiências inatas – concluindo que tais discussões eram estéreis, uma vez que o autismo seria o resultado de uma falta de experiências vitais na infância, cuja origem pode ter suas raízes em fatores intrínsecos, extrínsecos, ou em ambos. De qualquer forma, estudos atuais que tanto investigaram características de personalidade de famílias de crianças autistas (Bolton e cols., 1994) quanto à associação entre deficits sociais e privação emocional (Rutter & Lord, 1994) também não corroboraram a tese de Bettelheim. Apesar de haver evidência de maior presença de transtornos de humor e de obsessivo-compulsivos em familiares de indivíduos autistas (comparados a familiares de indivíduos que apresentam atrasos de desenvolvimento mas sem autismo - Bolton e cols., 1994), tais achados não são suficientes para que relações causais entre esses tipos de transtornos, a qualidade de relacionamento pais-criança e autismo sejam estabelecidas.Ao invés disso, os autores sugeriram que transtornos obsessivo-compulsivos, por exemplo, podem estar associados a uma suscetibilidade para o autismo.

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